sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A VOZ

A voz

Todos nós, maluquinhos, já teremos chegado - pelo menos uma vez na vida - àquele momento em que pensamos: "Talvez eu pudesse não ter visto este jogo ao vivo, em vez de...". Isto coloca-se, porque para nós, fanáticos, o clube está automaticamente à frente. Há um aniversário de um amigo, mas é um derby, portanto ele faz anos para o ano (já os derbies são só duas vezes por ano) e de certeza que ele vai compreender. Aliás, se não compreender é porque não nos conhece e não é mesmo nosso amigo.

O problema é que este tipo de decisão se torna mesmo automático e, com o passar dos anos, e já com muitos Benfica-Gil Vicente vistos - o suficiente para conseguir, apenas e só pelo momento do Benfica, praticamente adivinhar o que se vai passar em campo-, uma pessoa mantém o automatismo de preferir o clube, mas questiona-se mais vezes e mais facilmente.

Começo a escrever-vos assim porque eu no domingo obriguei a minha família a almoçar mais cedo, sacrifiquei uma tarde com a minha irmã, mãe, cunhado, irmão e sobrinha mais nova (que podia ser passada numa praia algarvia, é importante sublinhar) porque tinha que vir mais cedo para Lisboa. Porque estava de urgência? Porque tinha trabalhos para fazer? Porque vinha ver outros familiares ou amigos? Não, porque jogava o Benfica. Pior, esta decisão foi rapidamente apoiada pela C., não por minha causa, mas porque a seguir jogava o clube dela (aquele de riscas, que devia acabar).

Assim, em pleno Estádio da Luz, perto dos 85 minutos, com a iminente segunda derrota consecutiva a chegar e um nihilismo suicida a tomar conta de mim, uma voz - tímida, mas nítida - ousou dizer no meu cérebro: "Talvez tivesse sido melhor ter ficado em Faro", enquanto a minha cabeça batia devagar e repetidamente na cadeira da frente. Era uma voz que, apesar de clara pela primeira vez, era minha conhecida. 

Foi ela que eu já ouvi, vezes sem conta, mas muito ao fundo e com muito ruído à volta (BENFICA! BENFICA! BENFICA!) quando disse já mais vezes do que consigo contar à minha mãe que não ia visitá-la e à família porque "este fim-de-semana jogamos sábado e é importante" (como se alguma vez não fosse). Foi essa voz que eu ouvi quando acordava às cinco da manhã para estudar só para não ter problemas de consciência em ir à bola com uma oral no dia a seguir. Era essa voz que me devia ter impedido de dizer ao meu pai: "Então tu marcas o jantar dos teus 50 anos para um sábado em que o Benfica joga?", passando por cima do facto de toda a família e amigos terem viajado nesse dia só para jantar connosco. Era essa voz que me devia recordar que a 16 de Março de 2005 tive uma noite épica de copos com irmãos, primos e amigos e não que foi a noite em que ganhámos 0-2 ao Setúbal, golos do Simão e Manuel Fernandes, vitória fundamental para o título.

A maior discussão que tive assim, dentro de mim, foi quando a C. foi operada. O Benfica recebia o Zenit, nos oitavos-de-final da Champions, depois de ter perdido 3-2 fora. A C. ia ser operada - cúmulo das provocações! - no Hospital da Luz. Ora, segundo a hora da operação - do interesse do próprio cirurgião e anestesista, que acabaram por ir à Luz (grandes!)-, tudo estava cronometrado ao segundo para eu ver a C. sair do bloco, perguntar se tudo tinha corrido bem, telefonar a toda a gente e correr para o meu lugar (comprei bilhete e tudo), ver o Benfica e depois voltar para ver finalmente a C. sem estar zonza da anestesia. 

Tudo isto estava a correr bem, até que eu, pela primeira vez, vacilei e não consegui deixá-la. Confesso que tenho algum orgulho nisto - foi a primeira vez que a humanidade ganhou ao hooligan - mas também admito que não foi uma vitória limpa, porque vi o jogo ao lado dela, mas um bocado lixado por ela nem sequer estar acordada e a dizer: "TU ÉS O MELHOR NAMORADO DO MUNDO" a cada dois segundos, que era o que eu merecia (a única vez que ela acordou foi para perguntar: "Quanto está o Zenit?" Nem Benfica disse, porra).

Ora, no domingo, a depressão invadia-me a um nível tal que cheguei a achar possível que a razão - era dela, a voz - pudesse finalmente tomar conta de mim. Seria um passo para a vida adulta, para os comportamentos socialmente aceites. Finalmente saberia dizer, sem ter de ir ao google, que países fazem fronteira com a Alemanha, em vez de saber todos os estádios onde foram disputadas as finais da Liga dos Campeões de 2013 para 1984 de cor. Mas, felizmente, o Benfica salvou-me. Markovic e Lima impediram-me, aos 29 anos, de escolher o lado da normalidade. E, de braços abertos, berrando loucamente nem sei o quê, festejei mais uma tarde que não passei com as pessoas que eu mais adoro no mundo.

Este texto é para essas pessoas. As que adoro tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, que, um dia, vou gostar tanto delas como do Benfica.

in Lá Em Casa Mando Eu

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